Henderson, o Rei da Chuva (*)




Saul Below
Cia das Letras
456 Páginas


Eugene Henderson é um homem complexo e em plena crise de meia-idade, o que agrava um temperamento turbulento de tendências suicidas. Riquíssimo, descendente de figuras de proa da história dos Estados Unidos, ex-combatente da Segunda Guerra ferido e condecorado, depois de dois casamentos e um punhado de filhos, de conflitos com parentes e vizinhos, de dores de dente crônicas e de incontáveis bebedeiras, ele decide romper com seu passado e empreender uma virada existencial. Parte então para a África, em busca de um novo sentido para a vida. Animado pelo desejo de fazer o bem em meio a tribos afastadas do contato com a civilização moderna, Henderson primeiro se fixa entre os Arnewi e depois entre os Wariri, povos contrastantes que só possuem em comum uma crônica falta de água para a lavoura e o gado. 

Demonstrando um extraordinário domínio da narração em primeira pessoa, Bellow relata pela voz ao mesmo tempo exasperada e divertida do próprio Henderson os desajustes entre o racionalismo pragmático do personagem e uma África exótica, remota e insondável. Com alguma licença, as aventuras do voluntarioso protagonista podem ser lidas como uma variação irônica e bem-humorada, mas não menos humana, do confronto entre a civilização ocidental e a África selvagem encenado por Joseph Conrad em Coração das trevas .


Porasy e Jegwaká - Vânia P. S. Hu'yju

Tenho tido o privilégio de, há mais de 6 anos, dar uma disciplina que visa a formação e capacitação de missionários transculturais: “Comunicação Transcultural e Contextualização”. E em determinado ponto da disciplina sempre oriento os alunos a olharem para as artes, as expressões artísticas do povo para ouvir delas a cosmovisão que o povo tem acerca da vida.

Assim que cheguei ao Xingu (não como missionário e nem como Pastor, porque não se entrava lá dessa maneira) como professor de Gramática da Língua Portuguesa, um indígena que logo se tornou um grande amigo veio me mostrar um livro com os mitos da Região. Folheando as páginas cheias de gravuras, de repente ele aponta o dedo e diz este é o “Jesus dos brancos”. Ao ouvir isso, fiquei com cara de abestalhado, mas não disse nada, apenas pedi o livro emprestado. Em casa, busquei a gravura que ele havia apontado e a história que estava ali. A gravura e a história se referiam a Taungue, um indígena mítico, cujas histórias de fundação do povo giravam ao redor dele. O problema é que Taungue era mentiroso, trapaceiro e enganador naquelas narrativas míticas da cultura. Como, então, associaram ele a Jesus? Eu tenho minhas teorias...

Mas o que quero, de fato, compartilhar é que é fundamental no contato com o outro e sua cultura a descoberta desses elementos: literatura, pintura, artesanato em geral, etc. Eles significam! E se queremos apresentar o Evangelho de uma maneira que o outro compreenda e, ao mesmo tempo, minimizando o sincretismo o máximo possível, o missionário deve fazer o dever de casa de conhecer a cosmovisão do outro antes de apresentar-lhe o Evangelho. Daí, danças, ritos, narrativas míticas e tudo o mais deve vir aos olhos e ser estudado com carinho pelo missionário, pois é esse material que nos dará a percepção até mesmo do que na cultura do outro pode ser uma porta aberta para a má compreensão do Evangelho (como é o caso de Taungue, por exemplo).

Neste ponto, quero apresentar dois livros interessantíssimos que vieram às minhas mãos: “Porasy e os estranhos seres da Mitologia Guarani” e “Jegwaká – o clã do centro da terra”, ambos da Professora Vânia P. S. Hu’yju. O primeiro é um romance envolvente a partir das narrativas do avô de Porasy sobre os antigos seres de sua mitologia, mas que, aos poucos, deixam de ser meros seres mitológicos e tomam lugar no dia a dia da jovem menina. “Jegwaká” é sob a perspectiva narrativa de três crianças enviadas pelos deuses: Avá Verá, Kunhã Rendy e Mitã Rory. A partir dos acontecimentos da vida das três crianças somos apresentados ao estilo de vida e à cosmovisão Guarany. O animismo – cosmovisão preponderante nos povos tribais de todo o mundo – é mostrado em todo seu colorido e ambos os livros nos dão essa oportunidade de enxergar o mundo com os olhos do povo Guarany. Duas obras indispensáveis para quem deseja trabalhar com esses povos. Os dois livros se encontram na Amazon em formato de e-book.     

Comunicação e Cultura - Ronaldo Lidório

Nos anos em que trabalhei com o povo Kalapalo, no Parque Indígena do Xingu, tive a oportunidade de ir àquele trabalho logo após o curso do CLM (Curso de Linguística e Missiologia) da Missão ALEM (AssociaçãoLinguística Evangélica Missionária). Sobre o tempo em que estivemos envolvidos especificadamente com os povos do Xingu, tenho narrado essas histórias do nosso contato com eles no Blog Morávios (clique aqui).

Além da formação do CLM, um curso intensivo de um ano para preparar o missionário a trabalhar com povos agrafes, desenvolver um alfabeto, uma ortografia para o povo, alfabetizá-los na própria língua materna e, então, começar o trabalho de tradução da Bíblia, havia o material original do curso CAPACITAR para dar uma formação mínima nas áreas de linguística, antropologia e missiologia. Deste material do CAPACITAR, tive a oportunidade de soma-lo ao que havia reunido no CLM e saí para o Campo Missionário. Na esteira do que estava sendo produzido naquela época, surgiram dois livros do Lidório: “Plantando Igrejas” e “Antropologia Missionária”. Ambos com uma perspectiva Reformada da área de missiologia.

Todavia, a Editora Vida, em 2014, lança o “Comunicação e Cultura” como um resumo e adaptação do que Lidório vinha trabalhando nos últimos anos. Todos os assuntos desenvolvidos por ele, mas agora reunidos em um único livro, que vem com o seguinte subtítulo explicativo na capa: “A Antropologia aplicada ao desenvolvimento de ideias e ações missionárias no contexto transcultural”. E o livro cumpre exatamente este papel. Assim, depois de todos esses anos e após a experiência no Xingu, me vi relendo este novo livro, mas com olhos no passado e no futuro. No passado, porque me vi recordando que tive o privilégio de trabalhar todo o “roteiro de abordagem cultural” criado por Ronaldo Lidório em entrevistas feitas na aldeia e na cidade com a família do Cacique com quem morei. No futuro, porque sei que, a partir deste ano, trabalharei com outras culturas e povos e, assim que chegar, farei mais uma vez esse dever de casa para compreender esse novo ambiente em que estaremos inseridos.

O livro de Lidório possui uma primeira parte dedicada à apresentação dos conceitos e teorias: pressupostos teológicos tanto para a contextualização como para a comunicação; as teorias da comunicação; os conceitos de antropologia, cultura e homem; e o conceito de antropologia missionária. Finalmente, Lidório apresenta os métodos desenvolvidos na história da antropologia sobre pesquisas socioculturais e os padrões possíveis de interpretação. Como o foco é a antropologia missionária, Lidório já apresenta os temas sempre mostrando não apenas as aplicações e implicações dessas teorias no Campo com histórias e exemplos, mas, principalmente, mostra como que a antropologia missionária difere da Acadêmica. Antes de apresentar os roteiros para a sondagem da cultura, o livro ainda trata dos temas da Fenomenologia da Religião, Magia e Totemismo, ritos e Mitos.  

Mas é na segunda parte do livro que encontramos o material mais interessante e prático para o missionário que trabalha com uma cultura alheia a sua num Campo: os métodos Antropos, Pneumatos e Angelos. O primeiro visa dar ao missionário uma ferramenta que o ajude na compreensão da identidade sociocultural do povo; o segundo ajudará o missionário a pesquisar sobre os fenômenos religiosos do povo; o terceiro ajudará na comunicação do Evangelho de uma maneira compreensiva àquela cultura na qual o missionário trabalha a partir de tudo o que o missionário já vem estudando ali.

Ainda na seção conclusiva do livro, Lidório ajudará o missionário apresentando um método de aprendizado de línguas (Dialektos), além de mais alguns tópicos, além de outros estudos de caso. Um livro obrigatório a todo missionário transcultural.  

A vida entre os Antros - Clifford Geertz

“Qual a ideia por trás do fato social?” é a perspectiva mais impactante para a antropologia depois dos anos 60 e que inovou num campo dominado pelo estruturalismo e pelo neoevolucionismo na Academia.

Clifford Geertz é o antropólogo americano que apresentou suas teorias em duas frentes para análises de Campo: por um lado, o estudo simbólico atrás do significado cultural que se revela no estudo das cosmogonias, mitos, ritos e hierarquias presentes na economia diária do povo; por outro, o estudo hermenêutico, buscando a interpretação por trás dos fatos sociais do povo.

A vertente fundada por Geertz ficou conhecida como Antropologia hermenêutica ou interpretativa. O antropólogo, para Geertz, deve ir muito além da descrição dos fatos sociais: ele deve buscar os significados por trás desses fatos. Mas o que mais tem me atraído às teorias de Geertz é o fato da importância que ele dá à Cultura, especialmente às culturas complexas, multifacetadas e multiétnicas e plurirreligiosas. Porém, ao lado dessa perspectiva cultural, ele coaduna o papel do indivíduo como sujeito histórico, agente histórico de transformação. Além disso, Geertz trás para a Antropologia o auxílio da psicologia, da literatura, da filosofia e da semiótica.

“A vida entre os antros e outros ensaios”, da Editora Vozes, publicado em 2015, na Coleção Antropologia, mostra Geertz em toda sua dimensão e inteligência. Ele “falava e lia em árabe, dois ou três dos incontáveis dialetos indonésios, alemão, francês, espanhol, uma ou duas frases em japonês”. A especialidade dele, se assim posso expressar, é o mundo islâmico, o mundo árabe e a diferença entre um e outro. Os seus escritos discorrem sobre povos que foram atingidos pelo Islã, mas que guardam em si a tensão de ver conviver em seus territórios e governos tanto cristãos, como protestantes, católicos, hindus, mórmons e as muitíssimas expressões religiosas nativas. Aqui, nesse ponto, minha atração torna-se evidente, pois muito mais completo e investigador é Geertz do que, por exemplo, Lévi-Strauss, quando tentamos trabalhar com as realidades indígenas no Brasil, realidades também sob a tensão de uma sociedade plural.

Dentre os vários ensaios presentes no livro, quero destacar, primeiramente, todos os que descrevem Marrocos e a Indonésia, alvos de décadas de pesquisa de Geertz e que me deixaram com aquela sensação de “inteligência humilhada”, pois não há assunto algum na minha vida pessoal ou acadêmica que eu domine de maneira tão vasta e profunda como Geertz o faz quando se debruça a entender as sociedades árabes e muçulmanas. O conhecimento histórico, religioso, social, político dessas sociedades revelam um antropólogo estudioso, dedicado e profundo.

O ensaio sobre Malinowski, importantíssimo antropólogo da virada do século XIX para o século XX, mas que Geertz revela algo um tanto inusitado de sua personalidade: sua profunda antipatia e preconceito com o Campo no qual atuava. Malinowski deixou diários em que narra toda sua falta de tato e sua relação nada antropológica com os povos em que trabalhava e que, surpreendentemente, superou sua falta de identificação com o povo sendo incansável na sua disciplina diária de pesquisa. Ele produziu mais de 2.500 páginas de pesquisa fazendo exatamente o contrário do que tanto é ensinado hoje nas Academias – em nada se identificando com o nativo.

Outro ensaio, “Sobre a devastação da Amazônia”, muito especial para mim, pois é sobre um dos livros mais impressionantes que já li acerca das atrocidades cometidas contra povos indígenas, chamado “Trevas no Eldorado”, de Patrick Tierney, fruto de uma pesquisa que durou mais de dez anos e que trouxe um escândalo para a Associação Americana de Antropologia ao divulgar os usos e abusos de antropólogos e cientistas na dizimação do povo Ianomâmi na Venezuela, narrando experiências de eugenia e aliciamento sexual. O título do livro produzido pela Ed. Vozes remete exatamente a este ensaio específico:



Particularmente, o ensaio mais importante é o “Mudando objetivos, movendo alvos”. É aqui que Geertz faz uma apresentação do seu método de trabalho e suas teorias simbólicas e hermenêuticas. Mostrando suas influências – C.S. Pierce, Ferdinand Saussure, Gottlob Frege e Roman Jakobson – Geertz narra seu pensamento sobre os “sistemas de significado” ou “sistemas culturais” para se compreender e ordenar a comparação das religiões. A primeira linha de pensamento, portanto, é a “autonomia de significado”.

Diz Geertz que “significado não é um tema subjetivo, privado, pessoal, “na cabeça”. É um tema público e social, algo construído no fluxo da vida. Trafegamos por sinais em plein air, no mundo onde está a ação; e é nesse trafegar que o significado é produzido”. Aqui é importante notar que o significado é “falado” (não necessariamente pela boca), é narrado nos gestos, comportamentos, na condução para significar.

A segunda linha de pensamento é  “a de que o significado é materialmente incorporado, de que ele é (...)formado, transmitido, compreendido, emblematizado, expresso, comunicado, por meio de signos ponderáveis, perceptíveis e compreensíveis; dispositivos simbólicos, ritos de passagem ou encenações da paixão, equações diferenciais ou provas de impossibilidade, que são seus veículos”. Geertz conclui este ponto chamando a atenção para o fato de que o que torna um dispositivo “religioso” não é sua estrutura, mas seu uso. Assim, o antropólogo precisa estar atento a todo esse “equipamento para viver” construído pela cultura.

Finalmente, a terceira linha é a que aquilo que verdadeiramente importa, que, de fato, interessa e que vai revelar esse “equipamento para viver” é quando “nossos recursos culturais falham, ou começam a falhar. É no meio da confusão insolúvel, do sofrimento inelutável, do mal invencível, que veremos a religiosidade intervir.

Para o parágrafo anterior, é caso comum já no trabalho com povos animistas que, até mesmo pastores oriundos do animismo, quando se deparam com situações extremas – doença incurável de filhos, por exemplo – na madrugada, longe dos olhos de suas congregações, se dirigem aos antigos pajés e feiticeiros para solucionar seus problemas. Enfim, como antropólogos cristãos e missionários precisamos estar atentos a esses limites, pois é ali que se manifestará, verdadeiramente, a apreensão ou não da cosmovisão evangélica.   

Trevas no Eldorado - Patrick Tierney

De todos os livros que já li sobre a questão indígena, indubitavelmente este é o mais chocante de todos. Trata de um escândalo entre os Ianomâmis da Venezuela. Uma reportagem-denúncia, publicada em 2002, que durou 10 anos para ser concluída e, antes mesmo de sua publicação, rendeu as seguintes manchetes: antropologia machista (Salon), a antropologia entra na era do canibalismo (The New York Times), antropólogos loucos (The Nation), os danos das incorreções antropológicas (The National Review), a antropologia é má? (Slate), ianomâmis: o que fizemos com eles? (Time); “cientista” matou índios amazônicos para testar teoria racial (The Guardian). Até casos documentados de antropólogo que aliciou meninos e meninas indígenas para práticas sexuais estão no livro. Um alerta para que não esqueçamos que a ciência também é feita por seres humanos caídos. Nada é neutro no Reino humano...
Após a leitura, classificarei os livros assim:
Péssimo [0] Ruim [*] Regular [**] Bom [***] Muito Bom [****] Excelente [*****]