Investigações Filosóficas - Wittgenstein (1ª parte)

Após resenhar dois livros de Cassirer (aqui, aqui e aqui), ler “Investigações filosóficas” de Wittgenstein é sair de uma compreensão de linguagem para outra totalmente oposta ou, ao menos, direcionada, concentrada, num locus diverso. A sensação é de montanha russa: com Cassirer, estamos indo para o alto, transcendendo o universo da linguagem em toda sua potência e, com Wittgenstein, caímos vertiginosamente para alguém que aponta a falência, a incapacidade da linguagem como um todo orgânico na explicação da realidade. Wittgenstein, por isso mesmo, dirige seu leitor para seu conceito-chave de “jogos”.

         Sair de Cassirer e ir para Wittgenstein é sair de alguém que trabalha com todo o potencial da linguagem para alguém que trabalha toda a falência da linguagem – este é o ponto sobre o "feitiço da linguagem" do qual Wittgenstein tratará de se desvencilhar.

Por isso, Wittgenstein vai dizer: “A filosofia é uma luta contra o enfeitiçamento do nosso entendimento por meio da nossa linguagem”.  Para Cassirer, a filosofia é o esforço da razão humana para entender a si mesmo: um exercício intelectual de autoconhecimento e, para a filosofia moderna, o esforço se caracteriza por identificar, entender e explicar os símbolos criados pelo homem.

Para Wittgenstein, não é a interpretação sozinha de uma palavra que determina a significação. Tanto a interpretação quanto o interpretado pairam no ar e o que os une? As regras próprias daquele jogo! Há um jogo. O jogo tem suas regras próprias. Eu não posso jogar xadrez com as regras do futebol ou do pôquer. Eu não posso ter uma interpretação alheia ao sistema.

Muitas das vezes, quando trabalho com tradução, ou melhor, avaliando a tradução feita por alguém, vinham em minha mente muitas dessas questões propostas por Wittgenstein neste livro. Por exemplo, trabalhando uma palavra como o grego “doxa” que, em versões bíblicas para o português, foi traduzida por “glória” (ARA) e em outras por “natureza” (NTLH), encontramos um caso muito bom para o qual Wittgenstein está chamando a atenção. A mera concepção de “uma palavra por outra, uma denominação por outra”, principalmente de uma língua para outra, esbarra em confusões que demonstram não compreender “as regras específicas daquele jogo de linguagem”. Desde quando a palavra “natureza” seria sinônimo de “glória” em português? E veja a confusão no c. 17 do Evangelho de João quando, por duas ou três vezes, é dito que Jesus recebeu a natureza divina por parte de Deus. Abrir mão da glória que tinha para depois recebê-la é uma coisa bem diferente de dizer que Jesus abriu mão de uma natureza divina para depois recebê-la! E pior, por exemplo, perguntando ao falante de uma língua indígena, cuja Bíblia seguiu essa escolha da NTLH na tradução para sua língua materna, o que ele entende por “natureza” dentro daquele contexto, ele me aponta para o mato, para a selva que estava do lado de fora da sala em que nos encontrávamos conversando. Mas, desde quando, a palavra “natureza”, que já não tem nada a ver com “glória”, teria a ver com natureza no sentido “natureza selvagem”, se o que estamos falando é sobre natureza humana e natureza divina?!

         Assim, embora pareça que Wittgenstein parta de uma linguagem ou de exemplos muito simples e cotidianos da comunicação humana, a grande verdade é que ele reflete um fato importantíssimo que é exatamente os limites da linguagem. Quem, portanto, deve ler “Investigações Filosóficas”? Todos que se interessam pelo estudo de línguas e não apenas filósofos. “Investigações Filosóficas”, tanto pelo seu tema como pelo seu didatismo, deveria ser leitura obrigatória aos missionários transculturais e, principalmente, aos que irão trabalhar com tradução da Bíblia (que são o público para esta minha biblioteca de resenhas). É um livro que nos leva a pensar em coisas tão cotidianas da linguagem, tão óbvias, situações da comunicação que poderão parecer tão sem elegância e sem sofisticação aos mais acostumados com uma linguagem filosófica rebuscada, porém, são essas situações “provincianas” que mais deflagram nossas confusões de interpretação.

É importante salientar que há 2 Wittgenstein: o da primeira obra Tractatus Logico-Philosophicus (1921) e o Wittgenstein posterior. A presente resenha trata de uma obra que representa o “2º Wittgenstein”. A diferença entre essas duas fases e uma crítica aos pontos negativos da filosofia de Wittgenstein virão na próxima resenha, que tratará da 2ª parte do “Investigações filosóficas”.

Para resenha completa da 1ª parte do livro, clique aqui. O blog "Bibliotheca de Semiótica" pretende ser um banco de resenhas para interessados e missionários que trabalham com outras culturas. Assim, é característica da "Bibliotheca" que, durante os resumos dos livros, eu faça comentários sobre as ideias do autor, concordando ou refutando, para que o leitor possa encontrar uma crítica e auxílio para a formação do seu próprio pensamento. Boa leitura!

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Após a leitura, classificarei os livros assim:
Péssimo [0] Ruim [*] Regular [**] Bom [***] Muito Bom [****] Excelente [*****]