Crátilo - Platão

Há quem pense que Platão não se interessa pela questão da linguagem e que Crátilo seria uma obra menor no corpus do filósofo. Contudo, Platão está se dirigindo há duas concepções sobre a linguagem nesta obra: o convencionalismo e o naturalismo. E que, na verdade, será a partir do problema da linguagem que Platão apresentará a sua teoria das Ideias (ou Formas).

         O convencionalismo pregava que não há relação alguma entre o Ser e as palavras. Estas, quando dadas às coisas, são meramente etiquetas de identificação sem qualquer vínculo com a essência das coisas. Por outro lado, o naturalismo defendia que, ao nomearmos as coisas, já estávamos dizendo o Ser delas. Assim, as palavras e o Ser das coisas estavam vinculados.

         Há um contexto para que possamos compreender melhor os diálogos em Crátilo, a saber, Platão está discutindo com os filósofos pré-socráticos, de um lado Protágoras e de outro Górgias, ambos embasados em Heráclito. Este filósofo defendia duas ideias em relação ao Ser: a doutrina do fluxo de todas as coisas e a doutrina da emanação. O convencionalismo de Protágoras se baseava na doutrina do fluxo de todas as coisas, por isso seria impossível às palavras revelarem algo de uma essência das coisas. O naturalismo de Górgias se baseava na doutrina da emanação, isto é, as coisas emanam algo de sua essência que é captado pelos sentidos não estando as palavras assim totalmente desvinculadas do Ser. Todavia, o naturalismo de Górgias não era uma identificação com o Ser das coisas, mas uma captação. Por que isso é importante? Porque Górgias, embora saiba que algo do Ser é captado pelos sentidos (isto é, a nomeação das coisas não é um processo arbitrário), também concorda que o Ser está em fluxo. Daí Górgias ser o pai da Retórica. Esta é a disciplina que buscará seduzir o ouvinte não pela defesa da verdade, pois esta é inacessível uma vez que o Ser está em fluxo contínuo, mas por meio do discurso mais competente, mais provável, mais bem apresentado. Górgias dará continuidade, portanto, a essa visão mágica da linguagem que é capaz de curar o corpo e a alma dos ouvintes, segundo defendiam os pitagóricos.

         Não era minha intenção já resenhar Platão ou quaisquer gregos, embora eles sejam o pontapé para toda uma teoria dos símbolos. Entretanto, após ler Wittgenstein, e apesar da sua tese de suprimir toda filosofia clássica, tanto ele como Cassirer estão montados sobre os ombros dos gregos (aceitem eles isso ou não). Mas quem não está? Wittgenstein repete a mesma ideia de Parmênides, que veio 2500 anos antes dele, na frase mais famosa e com a qual ele encerra sua obra o Tratactus...: "Sobre aquilo de que não se pode falar, deve-se calar." Compare com a frase de Parmênides no poema Da natureza: “É necessário que o dizer e pensar que é sejam; pois podem ser, enquanto nada não é: nisto te indico que reflitas”. Assim, diante de Cassirer e Wittgenstein, percebi que ambos podem ser unidos de certa maneira às tradições gregas (até porque não há nada de novo debaixo do sol). Aliás, não podemos esquecer as próprias palavras de Wittgenstein de que sua filosofia é um exercício contra o feitiço da linguagem. Cassirer à concepção pitagórica da linguagem e Wittgenstein tanto a Górgias, mas, principalmente, a Parmênides, que será apresentado como saída ao problema da linguagem em outra obra de Platão, após a conclusão de Crátilo.

Crátilo se torna especialmente importante para a Bibliotheca de Semiótica não apenas pela ligação com Cassirer e Witttgenstein, mas porque Sócrates vai tratar o nome como uma imagem (lembrando que, para os gregos, “nome” é substantivo, verbo, etc). Do mesmo modo que uma pintura é uma cópia de alguma realidade, também o nome é cópia, imagem de uma coisa em si. Todavia, veremos que é exatamente essa concepção do nome como imagem que vai falir toda a discussão travada na obra e que Platão deverá tentar resolver em Parmênides e no Sofista. Nas resenhas destas obras, desenvolverei as críticas pertinentes ao corpo filosófico platônico.

         Durante a leitura de Crátilo, peguei-me, por várias vezes, lembrando-me de uma questão ligada à discussão entre Sócrates e seus dois amigos. No povo indígena com o qual eu trabalhei, havia um traço cultural que me chamava muita atenção. Os nomes dados aos filhos eram os mesmos nomes dos avós paternos e maternos. E parecia que não iriam faltar nomes, pois cada indígena no correr da sua vida recebe, ao menos, 3 nomes, sendo que são 3 nomes que a mãe dá e 3 nomes que o pai também dá. O pai não chama seu filho pelo nome da mãe e nem a mãe o chamará seu filho pelo nome dado pelo pai. Já deu para perceber que cada indígena tem, portanto, 6 nomes. Contudo, como eles acabam tendo muitos filhos, ainda assim, chega uma hora que os nomes acabam e eles começam a adotar “nomes dos brancos”.

         Certa vez, perguntei ao cacique onde estava o meu aluno chamado Kamaluhe. E ele disse, para meu espanto, que não sabia quem era esse tal de Kamaluhe. Ora, o tal Kamaluhe era filho dele! O problema é que com a chegada da carteira de identidade e da escola há certa confusão nessa questão dos nomes. No caso do Kamaluhe, este era o nome dado pela mãe e, por isso, o pai não o identificou. Tudo isso pode parecer tolice ao leitor desavisado, mas vai ao encontro de pelo menos duas das teorias sobre a linguagem encontrada em Crátilo. Ora, se o Ser está em fluxo e, portanto, se mudamos com o tempo (nascimento, adolescência e vida adulta), um nome só não captaria a nossa essência naquele momento (Heráclito). E mais: para a mãe e para o pai há uma compreensão diversa do ser do filho (Protágoras).

Para resenha completa desta obra, clique aquiO blog "Bibliotheca de Semiótica" pretende ser um banco de resenhas para interessados e missionários que trabalham com outras culturas. Assim, é característica da "Bibliotheca" que, durante os resumos dos livros, eu faça comentários sobre as ideias do autor, concordando ou refutando, para que o leitor possa encontrar uma crítica e auxílio para a formação do seu próprio pensamento. Boa leitura!

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